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O corpo como potência e a potência dos corpos possíveis

Na performance DNA de Dan, o artista Maikon K (Maikon Kempinski) explora as diferentes potências do corpo e suas possibilidades, transitando pelo devir animal e por estados de consciência. Procurei evidenciar, neste texto, como a performance acaba por criar, intencionalmente ou não, outros tipos de corpos para além do corpo orgânico/organizado. É importante ressaltar que esta reflexão é fruto da minha própria experiência enquanto espectador/participador em uma apresentação espaço-temporal pontual de DNA de Dan, sendo esta análise, na maior parte, subjetiva.

A pele é o maior órgão do corpo e possui um dos índices de regeneração mais rápidos. Pouco a pouco, morre e renasce bem em frente aos olhos, fênix disfarçada de membrana. Maikon K usa dessa poética ao criar uma pele sobre a pele. Ao despir-se da membrana em frente ao público, sua obra morre e renasce. Porém, a profundidade desse órgão superficial, tal como o trabalho do artista, vai além dessa óbvia constatação.

Lendo, recentemente, um ensaio sobre o filósofo Baruch Spinoza me deparei com a pergunta “O que pode um corpo?”. Tal provocação pretendia introduzir os conceitos de imanência dos corpos físicos, um dos principais pontos de sua teoria, bem mais do que dar uma resposta objetiva. No entanto, creio que essa pergunta-chave para entender os conceitos de Spinoza se aplique também ao artista Maikon K.

Maikon K tenciona seu corpo quase ao limite, uma evidência de sua relação com Marina Abramovic, antes de começar a dança/ritual: ele permanece cerca de duas horas de pé, estático, preparando-se. Parte dessa preparação consiste em aplicar a camada da substância que se transforma em pele, esperar o produto atingir a consistência semelhante, além de uma série de exercícios de respiração e concentração. Após isso, a performance nasce.

Uso “nascer”, aqui, em sentido quase literal. O espectador é convidado a entrar no útero onde a performance se realiza (uma redoma de plástico preenchida com ar) se arrastando pela pequena fenda enquanto o performer em espasmos conscientes (seriam mesmo conscientes?) vai, aos poucos, dando início ao processo de retirar essa segunda pele.

Durante a performance, o artista se contorce em uma dança/agonia enquanto nos hipnotiza com seus olhos tal como uma serpente, animal este que em mitologias diversas é o símbolo da renovação devido a seu processo de troca de pele. Todo esse inconsciente Jungiano se revela na performance e se oculta ao mesmo tempo. Conforme rasga, come e dilacera a pele, Maikon K indaga além da pergunta que citei aqui antes: não se trata mais das potências do corpo e sim das potências de corpo.

Fotografia de Matheus Cândido, realizada durante a performance de Maikon K.

Corpo sem órgãos. Órgãos sem corpo.

O organismo não é corpo, o corpo sem órgãos, mas um estrato sobre o corpo sem órgãos, quer dizer, um fenômeno de acumulação, de coagulação, de sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligações, organizações dominantes e hierarquizadas, transcendências organizadas para extrair trabalho útil. (Gilles Deleuze)1

Disse, anteriormente, que o trabalho indagava para além da pergunta sobre as possibilidades do corpo, o que, no entanto, não significa que o trabalho também não tangencie essa questão. O artista constata a perenidade do corpo pela efemeridade da pele e tenciona suas barreiras através da porosidade do signo. Ao criar e destruir a própria pele, o artista se torna criador e criatura, Gênesis e Apocalipse.

Mas a pele por si só não constitui um corpo, ela é um órgão. Seria incorreto afirmar, entretanto, que o artista está interessado em criar órgãos, apesar de o fazer; creio que o que seja criado sejam rizomas. Partes que se aglutinam, expandem e coagulam em busca de um corpo e que nunca são corpos finalizados, mas sempre corpos em transformação. A performance é a constatação de que um corpo sem órgãos não é inimigo dos órgãos, como pensava Antonin Artaud, e sim inimigo da organização.

Gilles Deleuze e Félix Guattari usam o pensamento de Artaud para desenvolver algo que eles chamam de “corpo sem órgãos”. O corpo sem órgãos é o corpo desorganizado, esquizo, que foge do enquadramento e da mecanização da sociedade de controle. A meu ver, a performance de Maikon K é uma experimentação e uma investigação de como lidar com esse corpo.

Ao falar de sua performance, o artista afirma que procura atingir um estágio mais primitivo de comunicação e, para tanto, diz recorrer ao arquétipo da serpente. A serpente, como já mencionei, está ligada, em diversas culturas, a elementos de renovação, pois sua troca de pele é vista como renascimento. Maikon K usa especificamente a mitologia africana em seu trabalho, empregando a dança ritual afro e recorrendo ao culto do orixá Oxumaré (que é representado, no candomblé, como serpente).

O artista oscila entre ser serpente, ser humano, ser corpo, ser pele, ser orgão, ou melhor, é serpente enquanto é humano, corpo, pele e órgão. O corpo luta para permanecer em devir constante e nunca se organizar, nunca se definir, do começo ao fim o corpo é o mesmo, mas esse ser corpo é um estado fluído e permanente de devir.

Corpos imateriais

O trabalho também opera encarnando aquilo que não tem corpo: o próprio público envolto na performance se torna um corpo rizomático. Digo isso pois um dos aspectos mais interessantes da performance para mim foi seu poder de irradiação, no sentido de criar em torno de si uma zona autônoma temporária(2) onde o público interagia e se afetava com a obra. Não acredito que o trabalho seja como de fato criar TAZ's, no entanto, propicia um ambiente fecundo para o surgimento da mesma.

Durante a performance, vi sinais de “levantes” tais como uma mulher copiando os movimentos do artista e interagindo com o mesmo sem prévia instrução; em uma das etapas de destruição da pele quando o artista come partes daquela pele, vi também um outro integrante do público recolher um dos fragmentos e comê-lo também. O ápice, no entanto, deu-se no final, quando restavam cinco pessoas na redoma de plástico onde o trabalho ocorria. O artista estava perto de nós e pude ouvir uma mulher perguntando: "gostaria de puxar sua pele, posso?". Após isso, eu mesmo puxei aquela pele, sem que o artista tivesse me autorizado. O ímpeto de puxar, tocar no artista foi a revolta, o ato a revolução.

Neste sentido, Maikon K é o que Jerzy Grotowski chamaria de “pontifex”3, um fazedor de pontes. Pontes que ligam o público (testemunhas, observadores) ao ritual. O artista, contudo, nos convida a atravessar a ponte e sermos também Performers, pesquisado as possibilidades do nosso próprio corpo e, simultaneamente, ser órgão desse corpo maior.

O local onde a performance se realizada é um outro fator que contribui para a experiência. O público, se deseja participar, é obrigado a arrastar-se para dentro e é compelido a sair quando termina e a cúpula começa a esvaziar, tal como um feto que (re)nasce: o participante (e o local) bem como o performer são transformados durante o trabalho.

O trabalho opera em um microcosmo particular onde o espectador é convidado a entrar. O trabalho em si dura mais de duas horas, no entanto o artista usa o tempo a sua maneira. Fiquei uma hora na performance que, todavia, pareceu dez minutos. Ao sair, uma pessoa me indagou: “não acha estranho um trabalho que lhe faça perder tanto tempo? Quem, hoje, tem esse tempo sobrando?”. Apesar dessa pergunta, acredito que o objetivo seja o contrário. Não se trata de perder tempo e sim de perder a noção de perda de tempo.

Desde a revolução industrial o tempo foi capitalizado, transformando-se o tempo livre em mercadoria e o tempo em si em força de trabalho (daí a noção de time is money). Acredito que o artista use o tempo assim como usa sua pele, transformando-o em mais um rizoma do corpo da performance. Maikon K diz que quando se trabalha com o vazio e a imobilidade é preciso dar algo de real para capturar a atenção do público e, ao nos oferecer a morte/renascimento do seu corpo e as possibilidades dos outros corpos envolvidos, consegue fazer com que o tempo também se envolva e se torne elemento do trabalho.

DNA de Dan é um trabalho complexo e que envolve o espectador de forma singular pois é tão rápido que, quando acontece, termina. Depois que a redoma de plástico desinflou, o arista ainda permaneceu lá por algum tempo e então saiu, vestiu-se, agradeceu aos participantes e foi retirar o restante do resíduo que formara a pele. Eu trouxe um pedaço da pele para casa na esperança de que isto me servisse como souvenir da performance. Após alguns dias, a pele se esfacelou. A performance do artista pode se utilizar de materiais físicos porém sua potência é estritamente imaterial. Assim como a pele, ela se esvai e deixa suas marcas cravadas em nossa própria pele.

Notas

1 Uso, aqui, termos deleuzianos/guattarianos para descrever o que para mim, na performance de Maikon K, é a criação e investigação daquilo que Deleuze e Guattari, desdobrando o pensamento do teatrólogo Artaud, definem como um “corpo sem órgãos”. Também empreguei o conceito de rizoma, elaborado pelos dois filósofos. Para um aprofundamento nesses assuntos, recomenda-se, entre outros, O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia e o primeiro volume de Mil Platôs, disponíveis respectivamente nos sites

<https://ayrtonbecalle.files.wordpress.com/2015/07/deleuze-g_-guattari-f-o-anti-c3a9dipo-capitalismo-e-esquizofrenia-vol-3.pdf>, acesso em15/05/2016; e <http://escolanomade.org/wp-content/downloads/deleuze-guattari-mil-platos-vol1.pdf>, acesso em 23/05/2016.

2 Aproprio-me nesta passagem do termo Zona Autônoma Temporária ou T.A.Z (Temporary Autonomous Zone) do escritor Hakim Bey (Peter Lamborn Wilson). Segundo o autor, uma Zona Autônoma Temporária é de como um grupo, um Bando, uma coagulação voluntária de pessoas afins não-hierarquizadas, pode maximizar a liberdade por eles mesmos na sociedade atual. Em linhas gerais, TAZ é uma organização para o desenvolvimento de atividades comuns, sem controle de hierarquias opressivas. Para Hakim Bey, uma TAZ é uma aglutinação de pessoas que se encontra em tamanha complexidade que se pode dizer que toda uma sociedade está dentro da TAZ.

3 “A vida se torna, então, ritmo. O Peformer sabe ligar os impulsos corporais ao canto (o fluxo da vida deve se articular em formas). Então as testemunhas entram em estados de intensidade, porque, por assim dizer, elas sentem uma presença. E isso graças ao Performer, que é uma ponte entre a testemunha e este algo. Neste sentindo, o Performer é pontifex, fazedor de pontes”. Cf. GROTOWSKI, Jerzy. O Performer. Tradução de Patricia Furtado. eRevista Performatus, Inhumas, ano 3 , n 14, jul. 2015. Disponível em <http://performatus.net/wp-content/uploads/2015/07/Performer_Jerzy_Grotowski_Performatus.pdf>. Acesso em 22/05/2016.


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