Fotografia de Daniela Andrade da videoinstalação de Daniel Beerstecher.
“Depois do Futuro” é um projeto em caráter emergencial que tem como eixo principal a noção de futuro nas teorias estéticas, culturais e nas práticas artísticas contemporâneas. A mostra ocupou o Parque Lage com sessenta trabalhos de trinta e nove artistas, entre eles alguns estrangeiros como o alemão Daniel Beerstecher que expôs uma videoinstalação chamada Wie Ich Meinem Vogel Die Welt Erkläre (Como explicar esse mundo para o meu pássaro).
Nesse video de aproximadamente catorze minutos, o artista registra partes de uma caminhada de quatro dias, num percurso de noventa quilômetros que ele próprio percorre em silêncio com um pássaro em uma gaiola nas costas. Seu trajeto começa no centro histórico da capital paulista, passa por condomínios fechados das classes altas, por industrias e por favelas, e vai deixando lentamente essas áreas urbanas para trás em direção à Mata Atlântica, onde encontra uma comunidade indígena Guarani, que ainda vive uma vida tradicional por lá. Seu destino final será a costa do Atlântico; o mar.
Conhecendo a trajetória de Daniel, podemos entender melhor a sua escolha por registrar uma caminhada/percurso. O artista quando criança participava de um grupo de escoteiros inspirado nos “homens viajantes”, tradição europeia que remonta à Idade Média e sobrevive até hoje na Alemanha, por conta disso ele fazia viagens constantes com seus amigos escoteiros. A paixão por viagens e pela natureza o acompanhou desde então. Ainda jovem, ele partiu para o Marrocos de carona, com duzentos euros no bolso, chegando a dormir na floresta e em baixo de pontes. Seu espírito peregrino manteve-se após a escola, levando-o à América do Sul por três meses e em seguida à América Central, totalizando dois anos longe da Alemanha.
Daniel Beerstecher passou a se interessar por arte a partir de um mergulho que fez no Caribe, onde encontrou uma concha e dela faz uma escultura, percebendo, assim, que a arte era um caminho para expressar o que sentia. De volta à Alemanha, mostrou alguns desenhos para um professor universitário, que recomendou que ele trabalhasse como estagiário para um grupo de artistas durante um ano. Nesse tempo, montou um portfólio e foi aceito pela universidade. Sobre esse período Daniel relata: “no meu primeiro ano, ainda estava com a ideia de fazer esculturas, mas nunca me contentava com as coisas abstratas, puramente formais. Vi que a saída era fazer arte com o que eu gosto: viajar”.
Em novembro de 2011, já com certo destaque no circuito de arte internacional, Daniel arrumou suas mochilas e viajou ao Brasil para passar uma temporada que se estende desde então. Vive no Rio de Janeiro, onde dá continuidade a seu trabalho processual de video e performance, explorando a relação entre a natureza e a sociedade e assim expandindo e confundindo a compreensão entre arte e vida.
Seus trabalhos expressam essa constante investigação, revelando que o artista compreende a vida como obra de arte existencial e política, em que são fundamentais os processos relacionados ao caminhar, viajar ou deixar o tempo passar como atos de resistência. Sua obra exposta no Parque Lage demostra claramente esse pensamento. A começar pelo seu título, que é uma homenagem ao trabalho de Joseph Beuys Wie man dem toten Hasen die Bilder erklärt [Como explicar pintura a uma lebre morta], de 1965. Trazendo assim, uma referência ao “conceito expandido de arte” que é uma visão que aproxima a arte do cotidiano, a arte da vida, considerando que o criativo está no mais simples gesto humano.
Fazendo um paralelo do trabalho de Daniel com o de Beuys, é possível achar algumas semelhanças, além da nacionalidade de ambos. Beuys usa constantemente em seus trabalhos mensagens que correspondem às forças da natureza e suas transformações, assim como Daniel se cerca da natureza e das modificações que ela sofreu ao longo da história. O discurso de Beuys é indispensável à compreensão de sua obra e, principalmente, ao sentido de sua obra. Mesmo não se mostrando obrigatório, o discurso de Daniel e o conhecimento prévio de sua trajetória nos proporciona uma maior afinidade diante de seus trabalhos. E por ultimo, enquanto Beuys usa uma lebre em sua performance emblemática, Daniel se inspira usando um pássaro - este, por sua vez, vivo.
A ternura com que o performer trata o seu passarinho, expõe sua própria vulnerabilidade diante do mundo e seu silêncio nos dá o prazer de escutar o passarinho em meio ao som da cidade, até que seu canto se misture ao som da natureza. Assim que sua viagem acaba em frente ao mar, tanto Daniel quanto o passarinho somem e só resta a gaiola vazia como uma alegoria a ser desvendada. Desse mesmo ponto o video é retomado, tornando-se um ciclo em que não se sabe em qual ponto terá sido seu começo ou seu final.
Como explicar esse mundo para o meu pássaro é uma obra cheia de ironias, partindo da ideia de realizar uma viagem com um pássaro em uma gaiola, quando, de fato, ele poderia o fazer voando (desfrutando de sua liberdade), até a concepção de um estrangeiro (que no dicionário está definido como o que não pertence ou que se considera como não pertencente a uma região, classe ou meio) na tentativa de explicar um possível mundo desconhecido. O que talvez torne a caminhada mais aprazível ao público seja essa sensação de que, na verdade, ele esteja descobrindo e explicando esse mundo a si mesmo.
Referências bibliográficas:
Pipa. (2016). “39 Artistas Integram a Coletiva “Depois do Futuro”. Disponível em http://www.premiopipa.com/2016/04/39-artistas-integram-a-coletiva-depois-do-futuro/ [Acesso em 14/04/2016]
Site oficial de Daniel Beerstecher. Disponível em danielbeerstecher.com [Acesso em 01/05/2016]
Daniela Labra. (2016). Uma herança brasileira para Daniel Beerstecher e Pedro Butcher. (2016). Daniel The Wanderer. Disponível em http://www.premiopipa.com/pag/daniel-beerstecher/ [Acesso em 01/05/2016]
Funarte. (2015). Humor crítico de Daniel Beerstecher cria deslocamentos na Funarte SP. Disponível em http://www.funarte.gov.br/artes-visuais/humor-critico-de-daniel-beerstecher-cria-deslocamentos-na-funarte-sp-2/ [Acesso em 16/06/2016]
Dália Rosenthal. (2011). Joseph Beuys: o elemento material como agente social. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-53202011000200008 [Acesso em 22/06/2016]