[Pesquisa apresentada na XXXVIII Jornada de Iniciação Científica, Tecnológica e Artístico Cultural da UFRJ]
(Sub)versões femininas na arte contemporânea é uma pesquisa em andamento, que tem como objetivo contextualizar e discutir como o papel secundário da mulher nos discursos da História da Arte são problematizados na produção artística atual e analisar as contribuições das teorias feministas à produção e ao estudo da arte contemporânea.
Motivada no âmbito do projeto PIBIAC “Arte contemporânea na cidade do Rio de Janeiro”, a visitação a exposição “Amor”, uma coletiva com vinte mulheres artistas do leste europeu, (apresentada pelo Oi futuro), trouxe as inquietações que deram inicio à pesquisa.
As hipóteses formuladas diante daqueles trabalhos, tão heterogêneos entre si, vão desde o questionamento do título da mostra, passando pelas discussões em torno da representação/exposição do corpo da mulher na arte, até a dúvida quanto à pertinência de se expor obras de artistas mulheres em separado.
Como o campo de investigação é amplo, propõe-se a ênfase em três trabalhos específicos da exposição, de artistas que buscam entender a forma como a conjuntura atual das mulheres na sociedade reflete em suas obras e a partir da bibliografia pretende-se formular reflexões sobre o feminino e as questões do feminismo. Dentre as autoras dedicadas ao tema, Linda Nochlin é incontornável, especialmente seu célebre ensaio “Por que não houve grandes mulheres artistas?”, traduzido apenas neste ano para o português; e, entre as estudiosas brasileiras que pensam nas implicações do feminino/ feminismo nas artes visuais, destaco a pesquisadora Ana Paula Simioni e, entre seus escritos, o artigo intitulado “A difícil arte de expor mulheres artistas”, publicado em 2011.
Gostaria de iniciar com comentários sobre as três obras da mostra "Amor" que mais me chamaram a atenção. A primeira delas é a obra da Polonesa Agata Michowska que trabalha com escultura, vídeo e fotografia como um registro de reflexão pessoal em torno dos direitos de transitoriedade e memória, afirmação e medo. Ela usa imagens e sons, muitas vezes combinados com uma narrativa literária.
Lição de História é o trabalho que abre a exposição. No vídeo, o fragmento da imagem de uma mulher de saia longa folheia as páginas de um livro com os pés descalços, como se quisesse deixar as marcas de seus passos naquela história.
A artista subverte o livro em sua performance ao som de sussurros femininos numa forma de cantiga abafada. Deixando ainda mais evidente a crítica a um apagamento feminino na história, onde houve e ainda há barreiras para que mulheres sejam autoras de suas próprias histórias.
A historiadora Linda Nochlin, em seu texto de 1971 “Por que não houve grandes mulheres artistas” expõe a dificuldade das mulheres em acederem aos discursos acadêmicos na arte. Em um de seus fragmento a autora diz que o problema esta na natureza desigual de nossas estruturas instituições e na visão de realidade que estas impõem aos seres humanos que as integram. Homens brancos de classe média no poder ditando uma estrutura social que se perpetua por séculos por meio de uma história enunciada como verdadeira e absoluta.
Já o filósofo Michel Foucault explicita que a história deve ser compreendida como um campo de forças e de jogos de poder. Ou seja, a história da arte reproduz a hegemonia cultural da classe, raça e gênero dominante, isto é, o controle do homem sobre o poder de trabalho, sexualidade e acesso à representação simbólica da mulher.
A autoanálise da história da arte foi trazida à tona, em grande parte, por mulheres artistas e historiadoras da arte. Nochlin afirma, em uma revisão teórica escrita 30 anos após seu texto inicial, que sob o impacto das teorias do discurso e dos feminismos, a história da arte transformou-se profundamente, tanto a incorporação de visões fortemente teóricas sobre a história da arte quanto a mudança de paradigma que abandona um tipo de análise focada no mito do “grande artista” (que seria o homem criador que possui, em si, todas as condições para o êxito próprio, independente das estruturas sociais e institucionais nas quais ele tenha vivido e trabalhado). Segundo a autora hoje em dia, nenhum historiador da arte sério aceita tão óbvios contos de fada ao pé da letra.
O segundo trabalho é de Anna Baumgart, também Polonesa que trabalha com vídeo, instalação, performance e escultura. A artista representa uma perspectiva feminista focada nas experiências pessoais, muitas vezes escondidos, problemas e obsessões, tem interesse na pesquisa sobre arquétipos da feminilidade de uma perspectiva feminista.
Em Estáticas, histéricas e outras senhoras santas, Baumgart usa a estética de um documentário e analisa o fenômeno de auto-agressão e histeria. Um vídeo encenado que se refere a histórias da vida real, com cenas intensas que perpassam no cotidiano de mulheres comuns, representando desde medo de solidão, falta de aceitação, rituais íntimos realizado em casa até a auto-flagelação demonstrando que os limites são turvos.
A artista tenta com seu vídeo redefinir o conceito de "histeria", a transformação de um título ofensivo para um elogio. Baumgart afirma "Para mim histeria parece interessante, é sinônimo de uma abordagem criativa das mulheres para o mundo, uma postura rebelde ou até mesmo revolucionária".
Além da “histeria” ser considerada uma doença das mulheres no séc XIX. Eram consideradas histéricas as mulheres que não cumpriam com a sua função de reproduzir e cuidar do homem. O diagnóstico de histeria era frequentemente usado para demonizar e invalidar manifestações emocionais. Essas eram entendidas como comportamentos anormais e indesejados por parte das mulheres. A raiva, o medo, a desobediência e a sexualidade da mulher eram considerados comportamentos histéricos que precisavam ser corrigidos. Lésbicas, mães solteiras, negras, pobres, mulheres que gostavam de sexo, mulheres tidas como frígidas, mulheres divorciadas ou viúvas, todas aquelas tidas como subversivas, foram inúmeras as justificativas para a internação compulsória e o isolamento de todas elas.
Assim, para abrandar os sintomas da histeria, o tratamento aconselhado era a massagem genital, feita diretamente pelo médico. As mulheres precisavam visitar o médico regularmente para o tratamento da histeria e eram levadas pessoalmente pelos maridos que aguardavam do lado de fora do consultório. Eram abusadas e subjugadas.
O controle sexual, exercido pelas autoridades médicas, religiosas e jurídicas, ocorre tanto pela necessidade masculina de legitimação da paternidade, quanto pelo desconcerto, estranheza, desinteresse frente à desconhecida sexualidade feminina, tratada durante muito tempo como algo monstruoso, anormal e que precisava ser reprimido pela sua indefinição e agressividade ao universo masculino.
As teorias feministas contribuem para legitimar essas emoções que eram demonizadas no passado, dar voz as mulheres e a possibilidade de ser quem elas querem. É preciso lembrá-los de que, como pesquisadora ainda iniciante, apenas comecei meus estudos sobre as teorias feministas e, como se sabe, trata-se de um campo vastíssimo, com questões e polêmicas atuais e que instigam debates para se pensar não apenas as artes mas o campo da cultura amplamente considerado.
O ultimo trabalho analisado é de Mare Tralla, que trabalha com pintura, fotografia, performance e vídeo. Seu trabalho lida com os problemas sociais, utilizando sua história pessoal, e o investiga o lugar e o papel das mulheres na nossa sociedade e como as mulheres do leste Europeu são percebidas ou vistas no mundo ocidental.
Em seu trabalho Diário, a artista expõe páginas e páginas de seu próprio diário rico em detalhes e muitas angústias em torno da descoberta da sua identidade lésbica em meio a um casamento estável. Além de fotos onde expõe seu corpo nu mediante essa sua jornada de aceitação. Vivendo na Russia, onde sua orientação sexual é considerada crime, a exposição do seu corpo e do seu trabalho se transforma em gesto político de oposição a um sistema opressor.
A visibilidade não se trata simplesmente do desejo de ser vista e reconhecida. Visibilidade significa existência. Pois o que não é visível não existe e o que não existe permanece fora do âmbito da cidadania reconhecida.
O Feminismo constitui-se em uma vanguarda enquanto movimento social que revolucionou nossa compreensão das relações sociais de sexo, e criticou radicalmente os fundamentos da sociedade patriarcal na prescrição de papéis opressores e desiguais à homens e mulheres, também questionando a naturalização promovida ao próprio conceito de - Mulher. (Simone de Beauvoir, 1967)
Os conceitos que a sociedade “determinou” para o feminino, são alicerçados essencialmente em sua anatomia, posto isso, a questão sobre representação/exposição do corpo da mulher na arte se mostra fundamental na pesquisa.
Durante muito tempo, o corpo feminino foi representado através do olhar masculino, no século XIX, a exposição da nudez feminina funcionou como uma maneira de controlar e determinar a sexualidade e os comportamentos das mulheres. Reforçando o status dominador do homem na ordem social vigente, enquanto a mulher permanecia inerte, devendo ser dominada, subjugada ou idealizada pelo poder físico, social e econômico da potência masculina.
O nu feminino estava vinculado às ideias de sensualidade, fluidez e passividade, esse organismo humano sofria diversas pressões e controles por parte de um conjunto de instituições tuteladas pela ciência, que detinham a hegemonia dos discursos sobre a sexualidade, a doença e a saúde (como já vimos anteriormente)
Com o movimento feminista nos anos 70, a mulher ganha força na luta por uma representação própria do seu corpo, reivindicando um espaço e um direito de exibição para esses corpos silenciados.
Dentre esses primeiros movimentos artísticos feministas, quero destacar o trabalho de Carolee Schneemann, que utilizou provocativamente seu corpo para questionar a sujeição da mulher ao poder masculino, na obra intitulada Rolo interior (1975 e 1977). Em sua performance a artista surge perante o público coberta apenas por um lençol e explica que vai ler um fragmento da sua obra Cézanne, era uma grande pintora. Em seguida tira o lençol, sobe a uma mesa e pinta os contornos do corpo com lama. Lentamente, começa a extrair do interior da vagina um rolo de papel que segundo ela, contem um saber interior, um conhecimento primordial da ordem feminina dos mistérios naturais, onde água, vento, fogo, nudez e sexualidade femininas se cruzam.
Um trabalho que trouxe contribuições profundas para o movimento artístico feminista da época e ainda hoje reverbera no campo de arte contemporânea, em que há uma crescente apresentação do corpo feminino no campo da visibilidade, propondo novos olhares para os corpos negligenciados.
Pensando na exposição Amor, o título traz alguns questionamentos pertinentes pois ao mesmo tempo que reune artistas com trabalhos heterogêneos entre si (temas como opressão, conflitos religiosos, luta de classes, diásporas, relações familiares, questões LGBT, preconceito étnico, maternidade, feminismo contemporâneo, tradições etc.), são englobadas em um título frágil e simplista que socialmente é classificado como um sentimento feminino e as suas qualidades implicitas são vulgarmente reconhecidas como preocupações das mulheres.
O símbolo de Vênus representa o gênero feminino e remete à deusa do amor e da beleza (Vênus na mitologia romana ou Afrodite na mitologia grega), uma representação simbólica do espelho na mão da deusa Vênus.
Históricamente já somos representadas de um modo simplório como a união de beleza e amor, seria pertinente continuar alimentando esse imaginário com esse título superficial?
Outro incômodo despertado pela mostra, recaiu justamente em se reunir trabalhos díspares tendo como ponto de coesão entre eles o fato de terem sido realizados por mulheres. Essa é uma escolha que suscita muitos debates, como comenta a pesquisadora Ana Paula Simioni, no texto já mencionado, "A difícil arte de expor mulheres artistas". Recolho aqui um comentário do ensaio de Simione sobre os salões exclusivos para mulheres, surgido no século XIX, as associações femininas como a "Union des femmes peintres et sculpteurs" (União de mulheres pintoras e esculturas), desempenharam um papel fundamental ao possibilitarem que as artistas expusessem seus trabalhos, o que não era de pouca importância tendo em vista as dificuldades que enfrentavam para se formarem e serem avaliadas de modo equiparável aos homens. Todavia, esses salões exclusivos estimularam um olhar diferenciado para as suas obras, que paulatinamente passaram a ser julgadas não a partir de valores estéticos determinados pelo campo artístico, mas sim de expectativas sociais ditadas pelas demandas de seu gênero, como a de serem "doces, "femininas", "delicadas", "graciosas", etc. (...) a fim de dar visibilidade às mulheres artistas optou-se por autonomizá-las em função de algo em comum, seu pertencimento ao mesmo "sexo", com isso não se incorre no perigo de suscitar a falaciosa crença na existência de uma sensibilidade, uma plástica, um espírito comum a todas? Segundo a autora Camile Morineau, o gesto expositivo é propositalmente paradoxal. De um lado, o ato que impede as mulheres de tomar a palavra; de outro, aquele que as impede de a tomarem a não ser em nome das mulheres. As reflexões e questionamentos sobre esse tema contribuem para a apuração do campo de pesquisas e reflexões em história da arte na contemporaneidade.
Referências bibliográficas:
[if !supportLists]· [endif]MACEDO, A. G.; RAYNER, F. Gênero, Cultura Visual e Performance. Antologia crítica. CEHUM/Portugal: Húmus, 2011.
[if !supportLists]· NOCHLIN, L. Why There Have Been no Gratests Women Artists? In Art and Sexual Politics. Nova York: Macmilan Publishing, 1973 [Tradução para o português disponível em: http://www.edicoesaurora.com/6-por-que-nao-houve-grandes-mulheres-artistas-linda-nochlin/].
[if !supportLists]· [endif]SIMIONI, A. P. A difícil arte de expor mulheres artistas, in Cadernos Pagu, n. 36, Campinas, 2011.
· FOUCAULT, M. História da sexualidade; a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1997.
· TRILLAT, E. História da histeria. São Paulo: Escuta, 1991.
· http://www.cultura.rj.gov.br/materias/amor-em-tempos-de-colera. [Consultado em 28/06/2016]
· http://www.agatamichowska.com/index.php?id=12. [Consultado em 28/06/2016]
· http://artmuseum.pl/en/filmoteka/praca/baumgart-anna-ekstatyczki-histeryczki-i-inne-swiete. [Consultado em 28/06/2016]
· http://www.tralla.net/. [Consultado em 28/06/2016]