top of page

Gentileza brutal: Afeto e performatividade em Rafael Amorim (CCJF)


Já começou? Eu perguntei

Talvez. Ele respondeu


Ele faz isso. Há vezes que isso me irrita profundamente. Essa complacência serena que só pode ser fingimento. Só pode ser fingimento, porque se fosse real me colocaria de frente com a assustadora realidade de que as pessoas têm a capacidade de serem tão gentis assim. E ele de fato é. Rafael Amorim apresenta em seus trabalhos a mesma doçura que apresenta em seu pequeno sorriso frouxo. Seus trabalhos se constroem na relação entre espectador e obra.


Estar de frente com o próprio Rafael e estar de frente com seus trabalhos me confunde. As vezes não sei diferenciar um do outro, isto porque ele investiga de tal modo a relação afetiva em suas obras que é difícil, ainda que sem conhecê-lo, não sentir empatia pelo que é colocado diante de nós. É tudo muito sincero, tudo muito gentil, tudo muito pensado. Assim como ele mesmo é.


A performatividade que Rafael desenvolve no cotidiano só não pode ser chamada de arte/vida na minha opinião pois seria um empobrecimento cruel. Ele não transforma a vida em arte, ele a encara como tal. Resta apenas colocar no ambiente expositivo. Sendo que este ambiente não necessariamente tem de ser um espaço institucional. Para mim, Rafael Amorim é um dos jovens artistas que mais realizou exposições, pois cada dia que ele se coloca no mundo ele se expõe. E se expõe com sinceridade. Sempre que o encontro sinto que estou presenciando um acontecimento.


Tive a oportunidade este ano de participar de uma performance que ele realizou no Festival Art in Process. O trabalho se chamava Entre Pares e consistia inicialmente dele recortando, partindo, serrando (ou seja, dividindo-os, tornando-os pares) uma série de objetos que estavam em cima de uma mesa. Para realizar tal operação ele utilizava tesoura e serra. Quem estava na mesa com ele era convidado a dar alguma coisa que desejasse compartilhar.


De início esse gesto me pareceu mais banal do que simbólico. Não senti que havia ali a sinceridade característica que eu via em seus outros trabalhos. No entanto, após esgotados os objetos da mesa, ele começou a tirar objetos que estavam em seus bolsos para reparti-los. Tive inclusive que adverti-lo a não serrar seu celular (como ele pretendia) por medo da bateria explodir. E ele continuo, finalizado os bolsos começou a tirar tudo oq tinha no corpo. Relógio, camisa, calça, cueca. Tudo foi repartido e compartilhado. E quando não havia mais o que entregar ele foi embora.


É essa a dimensão que mais o define na minha opinião. Essa gentileza brutal. Essa entrega do próprio corpo para os outros. Tenho certeza que se fosse possível ele serraria a si mesmo, da mesma maneira que tenho certeza que ele teria serrado seu celular se eu não o tivesse impedido. Porque essa necessidade do outro de Rafael o coloca em perigo, perigo este que ele encara corajoso em busca de se repartir e de estar com o outro. De certa forma, aquela noite eu comunhei com Rafael.


E tomando um pão, ele o partiu e disse: Isto é meu corpo oferecido a vós, fazei isto em memória de mim e para que sempre os acompanhe (Lucas, 22;19)


Eu me lembro de quando ainda frequentava a escola dominical e achava a passagem que fala da ´’lavagem dos pés’’ uma das mais assustadoras. Como poderiam os apóstolos olhar para aquele que eles admiravam em posição de entrega tão grande. Como ver alguém tão disposto a dar sua carne só para estar contigo. Sinto o mesmo na performance de Rafael. Mas diferente da passagem, pensar nele me conforta.


bottom of page