Opostos. Esse acredito que esta é a palavra que melhor define a sensação que tive quando vi o vídeo/documentário Terremoto Santo (2017) de Barbara Wagner. O trabalho se trata do registro de uma proposição feita pela artista com alguns cantores evangélicos do interior do Nordeste onde ela os deslocava para ambientes externos e os filmava cantando. A artista declara em entrevista ao Instituto Moreira Salles (IMS), local onde a obra foi exibida, que está seria uma tentativa de criação de diálogos com algo que ‘’está perto, mas é difícil de ver’’, no caso a cultura evangélica e que o trabalho seria construído numa esfera permeada por um clima lúdico e trocas mutuas.
No entanto, a reação que o trabalho provoca no publico deixa evidente que estas trocas são bem mais unilaterais do que a artista pretendia. Fui assistir o trabalho duas vezes, uma no IMS Paulista e no IMS Rio em ambas as visitas me deparei com um publico na sua maioria branco, habituados a visitar ambientes expositivos e frequentadores de uma boemia social clássica de uma classe média/alta ( vale ressaltar que ambos os espaços são localizados em zonas nobres uma na avenida paulista outro na gávea).
Os visitantes que se encontravam na mesma sala que eu riam em uníssono. Exatamente pela distância que Barbara Wagner comenta que existe. A obra no entanto falha ao promover o dialogo que a artista pretendia e ainda deixa mais amplo o abismo que existe nessa configuração. Qual configuração? Nós versus eles. E este talvez o mais perverso aspecto do trabalho de Barbara Wagner. Hoje no brasil vemos uma assustadora ascensão do conservadorismo, liderado (ou pelo menos apoiado) pelo surgimento das bancadas evangélicas. Admito que em um primeiro momento este riso que a obra provoca me agradou, pois pra mim essas práticas beiram de fato ao cômico. Mas após um olhar mais cuidadoso percebi do que eu estava rindo. Ou melhor ainda, de quem eu estava rindo.
Se rimos juntos com a artista estamos rindo das pessoas que tem fé, não daqueles que agenciam a indústria da fé. Rimos das pessoas que de certa forma precisam dessa espiritualidade. Eu venho de família evangélica, é notável que há neste meio pessoas que utilizam da Igreja para justificar seu próprio comportamento retrógado, afinal não deixa de ser uma tribo social com seus valores e mecanismos próprios. Lembro, no entanto, de uma senhora que frequentava a mesma igreja que eu, ela escolhia sempre uma roupa nova para ir ao culto, levava sempre algo pra colocar no dizimo ainda que uma moeda. Lembrei imediatamente dela quando vi este trabalho. Ainda que Barbara Wagner fale de um mecanismo de persuasão das mentes (como é o caso das pregações ou dos cânticos como ela mesma coloca) ela expõe bem mais as pessoas que são persuadidas.
É preciso admitir também que a maioria de nós tem certa distância desse contexto. Parte considerável da população evangélica é de classe baixa ou classe média baixa. Dificilmente serão os espectadores deste trabalho durante sua exibição no IMS. É preciso reconhecer nosso privilegio e reconhecer que com ele vem a cegueira. Pois como bem coloca Chimamda ngozi é da natureza do privilegio cegar. Longe de mim querer defender o sistema cruel e mentiroso que as instituições evangélicas se tornaram, mas é preciso reconhecer que para certas pessoas, principalmente estas retratadas no trabalho (e afinal se a artista escolhe falar de algo que está próximo porque escolhe retratar fieis do interior do Nordeste? Não seria isto um reforço de uma exotização) a religião se trata de um sistema de esperança, de cuidado e amparo. Nós, público especializado em arte contemporânea, rimos da ignorância alheia, cegos e sem lembrar que nem todos conhecem Nietzche, Marx e estão tão esclarecidos como nós achamos que estamos.
Para muitos religião ainda é sinônimo de esperança. Então recomendo distância e empatia com a dor do outro. Não estamos, afinal, tão distantes assim.
Bibliografia
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Rio de Janeiro, Companhia das Letras 2003.
NGOZI ADICHIE, Chimamanda. Discurso realizado na Wellesley College Commencement, 2015.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala. Rio de Janeiro, Letramento 2017.